terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O que se entende por Estado de Coisas Inconstitucional?


Esse tema foi tratado durante a análise das liminares da ADPF 347.
De acordo com a Corte Constitucional Colombiana, que passou a desenvolver essa teoria, desde a Sentencia de Unificación (SU) 559, de 1997[1], esse Estado de Coisas existe quando um quadro insuportável de violações de direitos fundamentais começam a ocorrer de forma massiva/generalizada, decorrente da omissão ou comissão de diferentes autoridades públicas, agravado pela inércia reiterada dessas mesmas autoridades, ou seja, a estrutura da ação estatal está com sérios problemas e não consegue modificar a situação tida como inconstitucional.
Consequentemente, em por ocasião da gravidade do situação instalada, a Corte Suprema se afirma legitimada a interferir na formulação e implementação de políticas públicas, bem como na coordenação das medidas concretas imprescindíveis para superar o estado de inconstitucionalidades. Trata-se de uma manifestação do chamado “ativismo judicial estrutural dialógico”: um verdadeiro diálogo entre os poderes e a sociedade.
Por outro lado, para que tal circunstância seja declarada, imperioso se faz observar três pressupostos:
O primeiro deles é a constatação de um quadro de violação massiva/generalizada de direitos fundamentais, de modo a atingir um número amplo de pessoas. Destarte, não basta o desrespeito singular desses direitos;
O segundo pressuposto está na “falha estrutural do Estado”, prejudicando a coordenação entre medidas legislativas, administrativas, orçamentárias e judiciais, gerando a chamada “violação sistemática dos direitos”, bem como a reiteração e agravamento da realidade criada;
Por fim, o terceiro pressuposto é a expedição de remédios para uma pluralidade de órgãos, isto é, a busca de solução é dirigida não apenas para uma autoridade pública ou órgão, mas para vários, que não conseguem restabelecer a normalidade das coisas.
Vale lembrar que o reconhecimento da complexidade da situação faz com que a corte passe a proteger a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, encontrando-se diante da figura do “litígio estrutural”, caracterizado pelo alcance de um número amplo de pessoas e várias entidades, bem como por implicar ordens de execução complexa.
Nessa medida, para enfrentar o litígio da espécie, os juízes constitucionais acabam fixando “remédios estruturais”, voltados ao redimensionamento dos ciclos de formulação e execução das políticas públicas, o que não seria possível por meio de decisões comuns.
A bem da verdade, a finalidade da adoção dos remédios estruturais é superar os bloqueios políticos e institucionais instalados e aumentar a deliberação e o diálogo sobre causas e soluções do Estado de Coisas Inconstitucional (ativismo judicial estrutural dialógico).
Noutro giro, é de se observar que a simples determinação ou ordem por parte da corte não será suficiente. Não se pode apenas confiar na execução das ordens. É preciso dialogar com os órgãos públicos, flexibilizar as regras impostas e, principalmente, monitorar o cumprimento das determinações.
Nesse sentido, as primeiras experiências colombianas restaram-se fracassadas, pois a corte não acompanhou a execução efetiva das ordens impostas, que eram, em sua maioria, rígidas.
Todavia, a partir da análise do “deslocamento forçado”, a corte colombiana obteve maiores resultados, uma vez que as imposições foram mais flexíveis, prevalecendo o diálogo entre os poderes constituídos, sem contar a inclusão do monitoramento das execuções das ordens[2].
No Brasil, tratando-se da ADPF 347, o ministro Marco Aurélio optou pela via dialógica do instituto, já que propôs que a suprema corte brasileira interfira na formulação e implementação de políticas públicas e em escolhas orçamentárias, mas com ordens flexíveis, seguidas de monitoramento da execução das medidas.
Por derradeiro, forçoso concluir que o Estado de Coisas Inconstitucional ocorre quando verifica-se a existência de um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais, causado pela inércia ou incapacidade reiterada e persistente das autoridades públicas em modificar a conjuntura, de modo que apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público e a atuação de uma pluralidade de autoridades podem modificar a situação inconstitucional.
Na ADPF epigrafada, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que o sistema penitenciário brasileiro vive um "Estado de Coisas Inconstitucional", com uma violação generalizada de direitos fundamentais dos presos. As penas privativas de liberdade aplicadas nos presídios acabam sendo penas cruéis e desumanas.
Vale lembrar que a responsabilidade por essa situação deve ser atribuída aos três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), tanto da União como dos Estados-Membros e do Distrito Federal.
O STF ainda não julgou definitivamente o mérito da ADPF, mas já apreciou o pedido de liminar, decidindo, parcialmente, a medida liminar e deferiu apenas os pedidos da implantação de audiência de custódia e liberação das verbas do Fundo Nacional Penitenciário.
O Plenário entendeu que a ausência de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias eficazes representa uma verdadeira "falha estrutural" que gera ofensa aos direitos dos presos, além da perpetuação e do agravamento da situação, afirmou o relator.
Fontes:
STF. Plenário. ADPF 347 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 9/9/2015 (Inf. 798).
HERNÁNDEZ, Clara Inés Vargas. La Garantía de la dimensión objetiva de los derechos fundamentales y labor del juez constitucional colombiano em sede de acción de tutela: el llamado “estado de cosas inconstitucional”Revista del Centro de Estudios Constitucionales Ano 1, Nº 1, Universidad de Talca, Chile, 2003, p. 225.
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Dimensões do Ativismo Judicial do STF.Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 314-322.
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo.Da Inconstitucionalidade por Omissão ao Estado de Coisas Inconstitucional.2015 (No Prelo).
ARIZA, Libardo José. The Economic and Social Rights of Prisoners and Constitutional Court Intervention in the Penitentiary System in Colombia. In: MALDONADO, Daniel Bonilla. Constitutionalism of the Global South. The Activist Tribunals of India, South Africa and Colombia. New York: Cambridge University Press, 2013, p. 129-159.

[1] In casu, 45 professores dos municípios de María La Baja e Zambrano tiveram os direitos previdenciários recusados pelas autoridades locais. A Corte Constitucional Colombiana constatou que o descumprimento da obrigação era generalizado, massificado, alcançando um número elevado de professores além dos que instauraram a demanda. Assim, cumprindo o que se denominou ser um “dever de colaboração” com os outros poderes, a corte tomou uma decisão que não se limitou às partes do processo: declarou o Estado de Coisas Inconstitucional; determinou aos municípios, que se encontrassem em situação similar, a correção da inconstitucionalidade em prazo razoável; e ordenou o envio de cópias da sentença aos ministros da Educação e da Fazenda e do Crédito Público, ao diretor do Departamento Nacional de Planejamento, aos governadores e Assembleias, aos prefeitos e aos Conselhos Municipais para providências práticas e orçamentárias.
[2] Outros casos analisados pela Corte Constitucional Colombiana: Sentencia SU-250, de 26/5/1998: determinou a realização, em âmbito nacional, de concurso público para notário ante a omissão do Estado em organizar o certame; Sentencia T-590, de 20/10/1998: ordenou a confecção de políticas públicas eficientes de proteção dos defensores de direitos humanos no país; Sentencia T-525, de 23/7/1999: remedou o atraso sistemático no pagamento, por entidades territoriais, das verbas de aposentadoria. Na Sentencia de Tutela (T) 153, de 1998[6], discutiram-se, tal como ocorre na ADPF 347, o problema da superlotação e as condições desumanas das Penitenciárias Nacionais de Bogotá e de Bellavista de Medellín. A corte, apoiada em dados e estudos empíricos, constatou que o quadro de violação de direitos era generalizado na Colômbia, presente nas demais instituições carcerárias do país. Os juízes enfatizaram que a superlotação e o império da violência no sistema carcerário eram problemas nacionais, de responsabilidade de um conjunto de autoridades. Na Sentencia T-025, de 2004[8], é o mais importante do gênero. O deslocamento interno forçado de pessoas é um fenômeno típico de países mergulhados em violência, como é o caso da Colômbia. As pessoas são forçadas a migrar dentro do território colombiano, obrigadas a abandonar seus lares e suas atividades econômicas porque as ações violentas de grupos como as Farc ameaçam suas vidas, a integridade física das famílias, não havendo segurança ou liberdade nesses contextos. Todavia, a sociedade civil e as autoridades públicas colombianas, por muitos anos, simplesmente ignoraram as condições às quais se submetiam essas pessoas durante e após os deslocamentos.