terça-feira, 29 de março de 2016

O que se entende por ato de ignorância consciente?

            
O que se entende por ato de ignorância consciente?

Trata-se da Conscious Avoidance Doctrine ou também conhecida como Teoria da Cegueira Deliberada (ou “willful blindness doctritne”) ou, ainda, Instruções da Avestruz (“ostrich instructions”) ou ignorância deliberada. (CALLEGARI, 2008)

Essa Teoria foi criada pelos países da common low (Inglaterra[1]) e recriado pela Suprema Corte Estadunidense para as situações em que o agente visa ter vantagens e finge não ver a ilicitude da procedência dos bens, direitos e valores que recebeu. (LIMA, 2015)

A bem da verdade ocorre um “obscurantismo propositado”, em que o agente se coloca em uma situação de ignorância para tentar justificar a licitude de seu comportamento, diante de uma vantagem que auferiu, cuja proveniência é de potencial infração penal, quer dizer, o indivíduo age como uma avestruz, colocando a cabeça debaixo da terra em ocasiões de risco.

Obviamente que para aplicar a presente teoria é imprescindível que o agente tenha conhecimento que o benefício recebido por ele possivelmente se origina de uma infração penal. (LIMA, 2015)

Destarte, essa teoria permite a ocorrência de uma condenação criminal sem a devida produção de provas a respeito do conhecimento do agente sobre a situação ilícita suspeita, isto é, trabalha-se com a “presunção” para se punir, razão pela qual a doutrina critica sua aplicabilidade, pois se aproximando do direito penal objetivo.

Vale lembrar que é justamente nesse ponto que a teoria se diferencia do dolo eventual, pois enquanto neste exige uma indiferença a respeito do conhecimento real e atual do agente, aquela trabalha com o potencial conhecimento a respeito da origem ilícita do proveito/vantagem.

Nessa linha, a doutrina do ato de ignorância consciente aponta que o agente deveria se esforçar para conhecer a origem da vantagem recebida, mas prefere evitar a descoberta dos fatos, que, consequentemente, poderá acarretar em sua condenação sem mesmo ser provado que ele tinha conhecimento da ilicitude pratica por outrem.

Nessa perspectiva, quando o agente deliberadamente evita a consciência quanto à origem ilícita do proveito, assume o risco de produzir o resultado, respondendo a título de “dolo eventual” pelo delito de lavagem de capitais. (LIMA, 2015)

A aplicação da teoria somente é possível para as infrações dolosas, já que não se admite para os comportamentos culposos. Aqui reside sua importância.

Entre nós, essa doutrina será aplicada quando ficar demonstrado os seguintes requisitos: (1) conhecimento, por parte do agente, da elevada probabilidade de que a vantagem recebida era objeto de infração penal; (2) que as informações a respeito da infração penal antecedente sejam acessíveis; e (3) que, a esse respeito, ele seja indiferente, finge não saber.

Veja o art. 1º da Lei de Lavagem de Capitais (Lei 9.613/98):

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
[...]
§ 2º  Incorre, ainda, na mesma pena quem:  (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)
I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo;
I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal;  [...]

Em 2012, essa Lei foi alterada. As principais mudanças foram a substituição da expressão “crime” por “infração penal”, no caput do art. 1º, passando a abranger eventuais contravenções penais, como infração antecedente da lavagem, e a inclusão indireta do dolo eventual, já que foi retirado o termo “que sabe”, previsto no § 2º, também do art. 1º. (LIMA, 2015)

Analisando somente esse dispositivo e a jurisprudência, é possível apontar alguns exemplos de aplicação prática dessa teoria, senão veja:

O caso mais emblemático foi o do Banco Central em Fortaleza, no ano de 2005, ocasião em que uma organização criminosa, através de um grande esquema cinematográfico, conseguiu acessar o cofre do banco retirando milhões de reais. Mesmo com a notícia do furto pela imprensa, vendedores de uma concessionária não se esforçaram para perceber que a organização criminosa ali queria lavar o dinheiro produto do furto. In casu, adquiriram, à vista, várias caminhonetes usadas. Qualquer pessoa poderia suspeitar da origem ilícita do dinheiro, fazendo uma ligação com o furto ocorrido no BACEN, mas os vendedores/empresários fingiram desconhecer essa probabilidade, não levando o fato ao conhecimento das autoridades públicas. Contudo, devido expressão “que sabe”, constante no § 2º, do art. 1º, da Lei em epígrafe, em vigor na época dos fatos, o TRF da 5ª Região entendeu que não havia elementos suficientes para a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, embora a conduta fosse reprovável pela falta de diligência por parte dos empresários. Ver Apelação Criminal 5.520-CE. (LIMA, 2015)

Outro exemplo difundido foi a Ação Penal 470, STF, o caso “Mensalão”, cujo julgamento foi transmitido ao vivo pela imprensa. O Ministro Celso de Mello considerou que, pelo ato de ignorância consciente, era possível imputar responsabilidade criminal para alguns dos réus da ação penal em destaque, a título de dolo eventual, uma vez que muitos deles alegaram desconhecer a origem ilícita das vantagens recebidas. (BADARÓ, 2013)

Atualmente, a Doutrina da Cegueira Deliberada tem sido utilizada em diversas infrações penais, não se restringindo à Lei de Lavagem de Capitais, como, por exemplo, nos crimes de falso, crimes tributários e, sobretudo, na corrupção eleitoral, em que os candidatos a cargo eletivo são os verdadeiros beneficiados pela compra de votos, cujo substrato probatório é de difícil colheita.  Nesse sentido, ver os seguintes julgados: RECURSO CRIMINAL 872351148 RO (TRE-RO); RECURSO CRIMINAL 1457668 (TRE-RN); APELAÇÃO CRIMINAL 5001945-68.2013.404.7004 (TRF-4).

Como pode ser visto a teoria é nova, materializando-se num verdadeiro ato de obscurantismo propositado; uma ignorância consciente, ocasião em que, parafraseando o personagem Chaves[2], o infrator age “sem querer, querendo”.

REFERÊNCIAS

ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação Penal Especial: 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

CALLEGARI, André Luís. Lavagem de Dinheiro: Aspectos Penais da Lei n. 9.613/98, 2ª ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2008.

BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. LAVAGEM DE DINHEIRO - Aspectos penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Criminal Especial. 3ª ed. Juspodvm. Salvador. 2015.

BECK, Francis. A doutrina da cegueira deliberada e sua (in)aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. Revista de Estudos Criminais; v. 41, abr/jun, 2011, p. 49.







[1] Sleep Vs Regina – Esse é um dos primeiros registros de aplicação da teoria. O caso envolve a malversação de bens e a prova de que o agente conhecia a origem pública. Sleep era proprietário de uma ferragem que entregou, para ser embarcado em um navio, um barril de parafusos de cobre, sendo que alguns deles continham um sinal de propriedade pública. (BECK, 2011).
[2] El Chavo del Ocho (Chaves no Brasil e O Xavier em Portugal) é uma série de televisão mexicana de comédia de situação criada por Roberto Gómez Bolaños conhecido em seu país como Chespirito, produzida pela Televisión Independiente de México (posteriormente, Televisa). Exibida pela primeira vez no Canal 8, o roteiro veio de um esquete escrito por Chespirito, onde uma criança de oito anos discutia com um vendedor de balões em um parque (interpretado por Ramón Valdez). 

sexta-feira, 4 de março de 2016

O que se entende por coculpabilidade às avessas?

Coculpabilidade às avessas

Essa teoria ficou conhecida após ser cobrada no 51º Concurso para ingresso na carreira do MP/MG, em 2011.

Usando-se a lógica, antes de responder essa indagação, é preciso saber o que significa o seu inverso, ou seja, o conceito de coculpabilidade.

Nessa perspectiva, Eugênio Raul Zaffaroni (1999), ex-ministro da Suprema Corte Argentina, aduz que “a sociedade não brinda todos os homens com as mesmas oportunidades”.

Assim, a coculpabilidade, de acordo com o autor argentino, é a corresponsabilidade do Estado no cometimento de determinados delitos, praticados por cidadãos que possuem menor âmbito de autodeterminação diante das circunstâncias do caso concreto, sobretudo a respeito das condições sociais e econômicas, o que enseja, em tese, menor reprovação social.

A teoria defende que o Estado deve ser corresponsável pelo delito, pois não ofereceu condições de aprimoramento cultural e econômico ao agente, que se restou marginalizado, uma vez que a sociedade, muitas vezes, é desorganizada, discriminatória e excludente (ZAFFARONI, 1999).

Há, na verdade, a defesa de uma compensação, ocasião em que o Estado deve arcar com parcela da reprovação.

Nesse sentido, ainda que cometessem o mesmo crime, a pena de uma pessoa de alto nível social e econômico, portadora de ensino superior, seria maior do que a sanção imposta a uma pessoa de baixo nível cultural e econômico.

Imagine aquele cidadão que cresce em ambiente onde lhe foi negado os mínimos direitos de sobrevivência: ausência de hospital público; postos de saúde lotados com imensas filas; desemprego etc. Determinado dia é convidado a entrar no mundo do crime, passando a ter acesso aos serviços e bens que até então não foram oferecidos adequadamente pelo Estado. Nesse caso, alguns crimes praticados por ele poderiam ser abrandados no caso concreto, considerando-se sua exclusão por parte do Estado.

Entretanto, essa circunstância pessoal, “pobreza”, não pode isentar o infrator de pena. O que a teoria defende é apenas um abrandamento da sanção, na medida de sua culpabilidade, uma vez que o Estado será considerado coculpado.

Outra pergunta que poderia ser feita se refere à aplicação da teoria no Brasil. Não há previsão legal permitindo-a. Por outro lado, ao que parece, também não existe razão para proibi-la.

Nessa linha, o juiz poderá aplicá-la na ocasião da sentença, com base no art. 59 do CP, como circunstância judicial do crime, ou no art. 66 do CP, como atenuante inominada, onde serão considerados os critérios subjetivos do agente do crime.

Imagine o seguinte exemplo trazido pela doutrina: Um casal de mendigos, que reside debaixo da ponte, local público, é surpreendido durante relação sexual pela polícia. Tal conduta, em tese, configura o crime de ato obsceno, tipificado no art. 233 do Código Penal. Entrementes, entende-se que a própria sociedade marginalizou esse casal, de modo que passou a viver numa espécie de sociedade paralela, sem as devidas regras da sociedade formal. Nesse caso, não se deve atribuir a culpabilidade às pessoas marginalizadas, mas à omissão estatal e à própria sociedade que o marginalizou. (GRECO, 2014).

É possível, então, inferir que a teoria estaria presente implicitamente em alguns dispositivos no ordenamento jurídico brasileiro, permitindo-se sua aplicação, veja:

Código Penal:
Art. 66 – A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.


Lei 11.343/06:
Art. 19.  As atividades de prevenção do uso indevido de drogas devem observar os seguintes princípios e diretrizes:
[...]
IV - o compartilhamento de responsabilidades e a colaboração mútua com as instituições do setor privado e com os diversos segmentos sociais, incluindo usuários e dependentes de drogas e respectivos familiares, por meio do estabelecimento de parcerias;

Lei 12.288/10:
Art. 2º. É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais.

Constituição Federal:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Obviamente que a teoria recebe críticas da doutrina, principalmente por partir da premissa que a pobreza é a causa da prática delituosa; por conduzir à redução de garantias quando se tratar de suspeito rico; e, por fim, ignorar a seletividade do poder punitivo.

Em razão dessas críticas, a tese tem se enfraquecido, surgindo, então, outra: A Teoria da Vulnerabilidade, que apregoa a redução da culpabilidade para àqueles que contam com alta vulnerabilidade de sofrer a incidência do direito penal como, por exemplo, pessoas que não tem instrução, nem família estruturada.

Mas afinal, o que é a coculpabilidade às avessas?

Feitas essas considerações, é possível afirmar, segundo Grégore Moura (2006), que a coculpabilidade às avessas se manifesta sob dois enfoques:

O primeiro deles se traduz no abrandamento à sanção de delitos praticados por pessoa com alto poder econômico e social, como no caso dos crimes de cifra dourada (crimes do colarinho branco, crimes contra a ordem econômica e tributária etc.). A título de exemplo, é possível apontar a extinção da punibilidade pelo pagamento da dívida nos crimes contra a ordem tributária.

Destarte, o segundo enfoque se revela na tipificação de condutas que só podem ser praticadas por pessoas marginalizadas, como ocorre nas contravenções penais de vadiagem (art. 59) e a revogada mendicância (art. 60).

Nessa esteira, o Estado, além de não prestar a devida assistência social, criminaliza certas atitudes, aludindo que essas pessoas poderiam ter uma conduta conforme o direito, apesar de serem excluídas.

Isso demonstra claramente o etiquetamento e a seleção do direito penal, e como o próprio nome sugere, trata-se de uma inversão da teoria da corresponsabilidade do Estado.


REFERÊNCIAS:

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro: parte geral/Eugenio Raúl Zaffaroni, José Henrique Pierangeli. 2. Ed. Rev. E atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

MOURA, Grégore Moreira. O princípio da Co-culpabilidade no Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2006.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral, 16ª Ed. Atualizada. Niterói/ RJ: Impetus, 2014.

Outras fontes:

jurajuris.blogspot.com.br