O que se entende por ato de ignorância
consciente?
Trata-se da Conscious Avoidance Doctrine ou também conhecida como Teoria da Cegueira Deliberada (ou “willful blindness doctritne”)
ou, ainda, Instruções da Avestruz (“ostrich instructions”) ou ignorância
deliberada. (CALLEGARI, 2008)
Essa Teoria foi criada pelos países da common low (Inglaterra[1])
e recriado pela Suprema Corte Estadunidense para as situações em que o agente
visa ter vantagens e finge não ver a ilicitude da procedência dos bens,
direitos e valores que recebeu. (LIMA, 2015)
A bem da verdade ocorre um “obscurantismo propositado”, em que o agente se coloca em uma
situação de ignorância para tentar justificar a licitude de seu comportamento,
diante de uma vantagem que auferiu, cuja proveniência é de potencial infração
penal, quer dizer, o indivíduo age como uma avestruz, colocando a cabeça
debaixo da terra em ocasiões de risco.
Obviamente que para aplicar a presente teoria é
imprescindível que o agente tenha conhecimento que o benefício recebido por ele
possivelmente se origina de uma infração penal. (LIMA, 2015)
Destarte, essa teoria permite a ocorrência de uma
condenação criminal sem a devida produção de provas a respeito do conhecimento
do agente sobre a situação ilícita suspeita, isto é, trabalha-se com a
“presunção” para se punir, razão pela qual a doutrina critica sua
aplicabilidade, pois se aproximando do direito penal objetivo.
Vale lembrar que é justamente nesse ponto que a
teoria se diferencia do dolo eventual, pois enquanto neste exige uma
indiferença a respeito do conhecimento real e atual do agente, aquela trabalha
com o potencial conhecimento a respeito da origem ilícita do proveito/vantagem.
Nessa linha, a doutrina do ato de ignorância
consciente aponta que o agente deveria se esforçar para conhecer a origem da
vantagem recebida, mas prefere evitar a descoberta dos fatos, que,
consequentemente, poderá acarretar em sua condenação sem mesmo ser provado que
ele tinha conhecimento da ilicitude pratica por outrem.
Nessa perspectiva, quando o agente deliberadamente
evita a consciência quanto à origem ilícita do proveito, assume o risco de
produzir o resultado, respondendo a título de “dolo eventual” pelo delito de
lavagem de capitais. (LIMA, 2015)
A aplicação da teoria somente é possível para as
infrações dolosas, já que não se admite para os comportamentos culposos. Aqui
reside sua importância.
Entre nós, essa doutrina será aplicada quando ficar
demonstrado os seguintes requisitos: (1) conhecimento, por parte do agente, da
elevada probabilidade de que a vantagem recebida era objeto de infração penal;
(2) que as informações a respeito da infração penal antecedente sejam
acessíveis; e (3) que, a esse respeito, ele seja indiferente, finge não saber.
Veja o art. 1º da Lei de Lavagem de Capitais (Lei
9.613/98):
Art. 1º
Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação
ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou
indiretamente, de infração penal.
[...]
§ 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem: (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)
I - utiliza,
na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de
infração penal; [...]
Em 2012, essa Lei foi alterada. As principais mudanças
foram a substituição da expressão “crime” por “infração penal”, no caput do
art. 1º, passando a abranger eventuais contravenções penais, como infração
antecedente da lavagem, e a inclusão indireta do dolo eventual, já que foi retirado
o termo “que sabe”, previsto no § 2º, também do art. 1º. (LIMA, 2015)
Analisando somente esse dispositivo e a
jurisprudência, é possível apontar alguns exemplos de aplicação prática dessa
teoria, senão veja:
O caso mais emblemático foi o do Banco Central em
Fortaleza, no ano de 2005, ocasião em que uma organização criminosa, através de
um grande esquema cinematográfico, conseguiu acessar o cofre do banco retirando
milhões de reais. Mesmo com a notícia do furto pela imprensa, vendedores de uma
concessionária não se esforçaram para perceber que a organização criminosa ali
queria lavar o dinheiro produto do furto. In
casu, adquiriram, à vista, várias caminhonetes usadas. Qualquer pessoa
poderia suspeitar da origem ilícita do dinheiro, fazendo uma ligação com o
furto ocorrido no BACEN, mas os vendedores/empresários fingiram desconhecer
essa probabilidade, não levando o fato ao conhecimento das autoridades
públicas. Contudo, devido expressão “que sabe”, constante no § 2º, do art. 1º,
da Lei em epígrafe, em vigor na época dos fatos, o TRF da 5ª Região entendeu
que não havia elementos suficientes para a aplicação da Teoria da Cegueira
Deliberada, embora a conduta fosse reprovável pela falta de diligência por
parte dos empresários. Ver Apelação Criminal 5.520-CE. (LIMA, 2015)
Outro exemplo difundido foi a Ação Penal 470, STF, o caso “Mensalão”,
cujo julgamento foi transmitido ao vivo pela imprensa. O Ministro Celso de Mello considerou que, pelo ato de
ignorância consciente, era possível imputar responsabilidade criminal para alguns
dos réus da ação penal em destaque, a título de dolo eventual, uma vez que
muitos deles alegaram desconhecer a origem ilícita das vantagens recebidas. (BADARÓ,
2013)
Atualmente, a Doutrina da Cegueira Deliberada tem
sido utilizada em diversas infrações penais, não se restringindo à Lei de Lavagem
de Capitais, como, por exemplo, nos crimes de falso, crimes tributários e, sobretudo,
na corrupção eleitoral, em que os candidatos a cargo eletivo são os verdadeiros
beneficiados pela compra de votos, cujo substrato probatório é de difícil
colheita. Nesse sentido, ver os
seguintes julgados: RECURSO CRIMINAL 872351148 RO (TRE-RO); RECURSO CRIMINAL
1457668 (TRE-RN); APELAÇÃO CRIMINAL 5001945-68.2013.404.7004 (TRF-4).
Como pode ser visto a teoria é nova, materializando-se
num verdadeiro ato de obscurantismo
propositado; uma ignorância consciente, ocasião em que, parafraseando o
personagem Chaves[2],
o infrator age “sem querer, querendo”.
REFERÊNCIAS
ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação
Penal Especial: 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
CALLEGARI, André Luís. Lavagem de Dinheiro:
Aspectos Penais da Lei n. 9.613/98, 2ª ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado,
2008.
BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz.
LAVAGEM DE DINHEIRO - Aspectos penais e processuais penais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2013.
LIMA, Renato Brasileiro. Legislação
Criminal Especial. 3ª ed. Juspodvm. Salvador. 2015.
BECK, Francis. A doutrina da cegueira
deliberada e sua (in)aplicabilidade ao crime de lavagem de dinheiro. Revista de
Estudos Criminais; v. 41, abr/jun, 2011, p. 49.
[1]
Sleep Vs Regina – Esse é um dos primeiros registros de aplicação da teoria. O
caso envolve a malversação de bens e a prova de que o agente conhecia a origem pública.
Sleep era proprietário de uma ferragem que entregou, para ser embarcado em um
navio, um barril de parafusos de cobre, sendo que alguns deles continham um
sinal de propriedade pública. (BECK, 2011).
[2]
El Chavo del Ocho (Chaves no Brasil e
O Xavier em Portugal) é uma série de televisão mexicana de comédia de situação
criada por Roberto Gómez Bolaños conhecido em seu país como Chespirito,
produzida pela Televisión Independiente
de México (posteriormente, Televisa). Exibida pela primeira vez no Canal 8,
o roteiro veio de um esquete escrito por Chespirito, onde uma criança de oito
anos discutia com um vendedor de balões em um parque (interpretado por Ramón
Valdez).