sexta-feira, 4 de março de 2016

O que se entende por coculpabilidade às avessas?

Coculpabilidade às avessas

Essa teoria ficou conhecida após ser cobrada no 51º Concurso para ingresso na carreira do MP/MG, em 2011.

Usando-se a lógica, antes de responder essa indagação, é preciso saber o que significa o seu inverso, ou seja, o conceito de coculpabilidade.

Nessa perspectiva, Eugênio Raul Zaffaroni (1999), ex-ministro da Suprema Corte Argentina, aduz que “a sociedade não brinda todos os homens com as mesmas oportunidades”.

Assim, a coculpabilidade, de acordo com o autor argentino, é a corresponsabilidade do Estado no cometimento de determinados delitos, praticados por cidadãos que possuem menor âmbito de autodeterminação diante das circunstâncias do caso concreto, sobretudo a respeito das condições sociais e econômicas, o que enseja, em tese, menor reprovação social.

A teoria defende que o Estado deve ser corresponsável pelo delito, pois não ofereceu condições de aprimoramento cultural e econômico ao agente, que se restou marginalizado, uma vez que a sociedade, muitas vezes, é desorganizada, discriminatória e excludente (ZAFFARONI, 1999).

Há, na verdade, a defesa de uma compensação, ocasião em que o Estado deve arcar com parcela da reprovação.

Nesse sentido, ainda que cometessem o mesmo crime, a pena de uma pessoa de alto nível social e econômico, portadora de ensino superior, seria maior do que a sanção imposta a uma pessoa de baixo nível cultural e econômico.

Imagine aquele cidadão que cresce em ambiente onde lhe foi negado os mínimos direitos de sobrevivência: ausência de hospital público; postos de saúde lotados com imensas filas; desemprego etc. Determinado dia é convidado a entrar no mundo do crime, passando a ter acesso aos serviços e bens que até então não foram oferecidos adequadamente pelo Estado. Nesse caso, alguns crimes praticados por ele poderiam ser abrandados no caso concreto, considerando-se sua exclusão por parte do Estado.

Entretanto, essa circunstância pessoal, “pobreza”, não pode isentar o infrator de pena. O que a teoria defende é apenas um abrandamento da sanção, na medida de sua culpabilidade, uma vez que o Estado será considerado coculpado.

Outra pergunta que poderia ser feita se refere à aplicação da teoria no Brasil. Não há previsão legal permitindo-a. Por outro lado, ao que parece, também não existe razão para proibi-la.

Nessa linha, o juiz poderá aplicá-la na ocasião da sentença, com base no art. 59 do CP, como circunstância judicial do crime, ou no art. 66 do CP, como atenuante inominada, onde serão considerados os critérios subjetivos do agente do crime.

Imagine o seguinte exemplo trazido pela doutrina: Um casal de mendigos, que reside debaixo da ponte, local público, é surpreendido durante relação sexual pela polícia. Tal conduta, em tese, configura o crime de ato obsceno, tipificado no art. 233 do Código Penal. Entrementes, entende-se que a própria sociedade marginalizou esse casal, de modo que passou a viver numa espécie de sociedade paralela, sem as devidas regras da sociedade formal. Nesse caso, não se deve atribuir a culpabilidade às pessoas marginalizadas, mas à omissão estatal e à própria sociedade que o marginalizou. (GRECO, 2014).

É possível, então, inferir que a teoria estaria presente implicitamente em alguns dispositivos no ordenamento jurídico brasileiro, permitindo-se sua aplicação, veja:

Código Penal:
Art. 66 – A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.


Lei 11.343/06:
Art. 19.  As atividades de prevenção do uso indevido de drogas devem observar os seguintes princípios e diretrizes:
[...]
IV - o compartilhamento de responsabilidades e a colaboração mútua com as instituições do setor privado e com os diversos segmentos sociais, incluindo usuários e dependentes de drogas e respectivos familiares, por meio do estabelecimento de parcerias;

Lei 12.288/10:
Art. 2º. É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais.

Constituição Federal:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Obviamente que a teoria recebe críticas da doutrina, principalmente por partir da premissa que a pobreza é a causa da prática delituosa; por conduzir à redução de garantias quando se tratar de suspeito rico; e, por fim, ignorar a seletividade do poder punitivo.

Em razão dessas críticas, a tese tem se enfraquecido, surgindo, então, outra: A Teoria da Vulnerabilidade, que apregoa a redução da culpabilidade para àqueles que contam com alta vulnerabilidade de sofrer a incidência do direito penal como, por exemplo, pessoas que não tem instrução, nem família estruturada.

Mas afinal, o que é a coculpabilidade às avessas?

Feitas essas considerações, é possível afirmar, segundo Grégore Moura (2006), que a coculpabilidade às avessas se manifesta sob dois enfoques:

O primeiro deles se traduz no abrandamento à sanção de delitos praticados por pessoa com alto poder econômico e social, como no caso dos crimes de cifra dourada (crimes do colarinho branco, crimes contra a ordem econômica e tributária etc.). A título de exemplo, é possível apontar a extinção da punibilidade pelo pagamento da dívida nos crimes contra a ordem tributária.

Destarte, o segundo enfoque se revela na tipificação de condutas que só podem ser praticadas por pessoas marginalizadas, como ocorre nas contravenções penais de vadiagem (art. 59) e a revogada mendicância (art. 60).

Nessa esteira, o Estado, além de não prestar a devida assistência social, criminaliza certas atitudes, aludindo que essas pessoas poderiam ter uma conduta conforme o direito, apesar de serem excluídas.

Isso demonstra claramente o etiquetamento e a seleção do direito penal, e como o próprio nome sugere, trata-se de uma inversão da teoria da corresponsabilidade do Estado.


REFERÊNCIAS:

ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro: parte geral/Eugenio Raúl Zaffaroni, José Henrique Pierangeli. 2. Ed. Rev. E atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

MOURA, Grégore Moreira. O princípio da Co-culpabilidade no Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2006.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral, 16ª Ed. Atualizada. Niterói/ RJ: Impetus, 2014.

Outras fontes:

jurajuris.blogspot.com.br

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