Coculpabilidade às avessas
Essa teoria ficou conhecida após ser cobrada no 51º Concurso
para ingresso na carreira do MP/MG, em 2011.
Usando-se a lógica, antes de responder essa indagação, é
preciso saber o que significa o seu inverso, ou seja, o conceito de
coculpabilidade.
Nessa perspectiva, Eugênio Raul Zaffaroni (1999),
ex-ministro da Suprema Corte Argentina, aduz que “a sociedade não brinda todos
os homens com as mesmas oportunidades”.
Assim, a coculpabilidade, de acordo com o autor argentino, é
a corresponsabilidade do Estado no cometimento de determinados delitos,
praticados por cidadãos que possuem menor âmbito de autodeterminação diante das
circunstâncias do caso concreto, sobretudo a respeito das condições sociais e
econômicas, o que enseja, em tese, menor reprovação social.
A teoria defende que o Estado deve ser corresponsável pelo
delito, pois não ofereceu condições de aprimoramento cultural e econômico ao
agente, que se restou marginalizado, uma vez que a sociedade, muitas vezes, é desorganizada,
discriminatória e excludente (ZAFFARONI, 1999).
Há, na
verdade, a defesa de uma compensação, ocasião em que o Estado deve arcar com
parcela da reprovação.
Nesse sentido, ainda que cometessem o mesmo crime, a pena de
uma pessoa de alto nível social e econômico, portadora de ensino superior,
seria maior do que a sanção imposta a uma pessoa de baixo nível cultural e
econômico.
Imagine aquele cidadão que cresce em ambiente onde lhe foi
negado os mínimos direitos de sobrevivência: ausência de hospital público;
postos de saúde lotados com imensas filas; desemprego etc. Determinado dia é
convidado a entrar no mundo do crime, passando a ter acesso aos serviços e bens
que até então não foram oferecidos adequadamente pelo Estado. Nesse caso,
alguns crimes praticados por ele poderiam ser abrandados no caso concreto,
considerando-se sua exclusão por parte do Estado.
Entretanto, essa circunstância pessoal, “pobreza”, não pode
isentar o infrator de pena. O que a teoria defende é apenas um abrandamento da
sanção, na medida de sua culpabilidade, uma vez que o Estado será considerado
coculpado.
Outra pergunta que poderia ser feita se refere à aplicação
da teoria no Brasil. Não há previsão legal permitindo-a. Por outro lado, ao que
parece, também não existe razão para proibi-la.
Nessa linha, o juiz poderá aplicá-la na ocasião da sentença,
com base no art. 59 do CP, como circunstância judicial do crime, ou no art. 66
do CP, como atenuante inominada, onde serão considerados os critérios
subjetivos do agente do crime.
Imagine o seguinte exemplo trazido pela doutrina: Um casal de
mendigos, que reside debaixo da ponte, local público, é surpreendido durante relação
sexual pela polícia. Tal conduta, em tese, configura o crime de ato obsceno,
tipificado no art. 233 do Código Penal. Entrementes, entende-se que a própria
sociedade marginalizou esse casal, de modo que passou a viver numa espécie de sociedade
paralela, sem as devidas regras da sociedade formal. Nesse caso, não se deve
atribuir a culpabilidade às pessoas marginalizadas, mas à omissão estatal e à própria
sociedade que o marginalizou. (GRECO, 2014).
É possível, então, inferir
que a teoria estaria presente implicitamente em alguns dispositivos no
ordenamento jurídico brasileiro, permitindo-se sua aplicação, veja:
Código Penal:
Art. 66 – A pena
poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou
posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.
Lei 11.343/06:
Art. 19. As atividades de prevenção do uso indevido de
drogas devem observar os seguintes princípios e diretrizes:
[...]
IV - o compartilhamento de
responsabilidades e a colaboração mútua com as instituições do setor privado e
com os diversos segmentos sociais, incluindo usuários e dependentes de drogas e
respectivos familiares, por meio do estabelecimento de parcerias;
Lei 12.288/10:
Art. 2º. É dever do Estado e da
sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão
brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à
participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas,
empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e
seus valores religiosos e culturais.
Constituição
Federal:
Art. 227. É dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Obviamente
que a teoria recebe críticas da doutrina, principalmente por partir da premissa
que a pobreza é a causa da prática delituosa; por conduzir à redução de
garantias quando se tratar de suspeito rico; e, por fim, ignorar a seletividade
do poder punitivo.
Em razão dessas
críticas, a tese tem se enfraquecido, surgindo, então, outra: A Teoria da
Vulnerabilidade, que apregoa a redução da culpabilidade para àqueles que contam
com alta vulnerabilidade de sofrer a incidência do direito penal como, por
exemplo, pessoas que não tem instrução, nem família estruturada.
Mas afinal,
o que é a coculpabilidade às avessas?
Feitas essas
considerações, é possível afirmar, segundo Grégore Moura (2006), que a
coculpabilidade às avessas se manifesta sob dois enfoques:
O primeiro deles se traduz no abrandamento à sanção de
delitos praticados por pessoa com alto poder econômico e social, como no caso
dos crimes de cifra dourada (crimes do colarinho branco, crimes contra a ordem
econômica e tributária etc.). A título de exemplo, é possível apontar a
extinção da punibilidade pelo pagamento da dívida nos crimes contra a ordem
tributária.
Destarte, o segundo enfoque se revela na tipificação de
condutas que só podem ser praticadas por pessoas marginalizadas, como ocorre
nas contravenções penais de vadiagem (art. 59) e a revogada mendicância (art. 60).
Nessa
esteira, o Estado, além de não prestar a devida assistência social, criminaliza
certas atitudes, aludindo que essas pessoas poderiam ter uma conduta conforme o
direito, apesar de serem excluídas.
Isso demonstra
claramente o etiquetamento e a seleção do
direito penal, e como o próprio nome sugere, trata-se de uma inversão da teoria da corresponsabilidade
do Estado.
REFERÊNCIAS:
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro:
parte geral/Eugenio Raúl Zaffaroni, José Henrique Pierangeli. 2. Ed. Rev. E
atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
MOURA, Grégore Moreira. O princípio da Co-culpabilidade no
Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2006.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral, 16ª Ed.
Atualizada. Niterói/ RJ: Impetus, 2014.
Outras fontes:
jurajuris.blogspot.com.br
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